Camilo Martin
Nos últimos dois anos, cerca de 67 mil palestinos foram assassinados e 170 mil feridos por Israel em Gaza (1). As estimativas apresentadas pela relatora da ONU para assuntos palestinos, Francesca Albanese, são ainda mais brutais e ultrapassam 680 mil mortos (2). Trata-se, sem dúvida, de um genocídio executado pelo Estado de Israel com a cumplicidade do Imperialismo e, de fato, da maioria dos governos de todo o mundo.
Se é verdade que os últimos dois anos foram marcados pela ferocidade de Israel, a violência sistemática contra o povo Palestino se arrasta por 77 anos. Desde 1948, com a criação do Estado de Israel – a chamada Nakba, catástrofe do povo palestino – assistimos a um processo de colonização selvagem se utilizando de um método sistemático de limpeza étnica, como apresentado pelo historiador israelense Ilan Pappé (3).
Apesar da onda massiva de solidariedade que varreu o mundo, com destaques para as marchas multitudinárias em diversos países e duas greves gerais na Itália, os distintos governos, mesmo aqueles chamados “progressistas”, pouco ou nada fizeram para impedir o genocídio em curso, limitando-se a críticas a Netanyahu e Israel e a ações institucionais no âmbito dos organismos internacionais, como a ONU.
No caso do Brasil, o governo Lula não foi diferente. Em que pese ter assumido uma localização política diferente da extrema-direita brasileira, se restringiu a, no máximo, realizar duros discursos sem, na prática, tomar nenhuma ação concreta que impactasse diretamente os crimes cometidos por Israel que limitasse o sofrimento do povo palestino e fortalecesse a sua resistência.
Muitas palavras, poucas ações…
Em setembro recente, Lula subiu à tribuna da Assembleia Geral da ONU e realizou um forte discurso onde, entre outros temas, apontou a grave situação de Gaza (4). Antes disso, já havia entrado em atritos com a CONIB (5) e com Israel quando, em 2024, classificou a situação como genocídio e, inclusive, depois de um ano e meio do início do processo, anunciou que se juntaria à África do Sul como parte na ação que tramita na Corte Internacional de Justiça, em Haia, contra Israel (6).
Se no âmbito do discurso, Lula se posicionou contrariamente à ofensiva desatada por Israel, não foi capaz de ir além das palavras e movimentações institucionais no enfrentamento ao assassinato de dezenas (ou centenas) de milhares em curso desde outubro de 2023. Em nenhum momento, diante da gravidade da situação, o governo brasileiro ameaçou romper relações diplomáticas, comerciais ou militares com Israel, o que contribuiria para o isolamento israelense.
O caso do fornecimento de petróleo é exemplar. Uma análise da organização Oil Change International mostrou que o Brasil, em 2024, foi um dos cinco maiores fornecedores de petróleo cru a Israel (7). Neste ano, o petróleo representou cerca de 30% do total das exportações, seguido pela carne bovina (23%) e da soja (11%) (8). A interrupção das exportações de petróleo traria consequências econômicas e operacionais diretas para o funcionamento da máquina de guerra de Israel.
A ruptura das relações comerciais, combinada com o incentivo ao boicote aos produtos de Israel, como pedido em carta organizada pelo movimento BDS e entregue ao governo em 6 de junho de 2025, com mais de 12 mil assinaturas de artistas, intelectuais e personalidades, seria um passo concreto para isolar politicamente Israel, fragilizar sua economia e, por outro lado, minar sua atuação militar (9). Vale lembrar que o isolamento internacional, promovido através de sanções e boicotes, foi um fator fundamental para combater e desmantelar o regime de apartheid na África do Sul, por exemplo.
Inclusive, nem mesmo a equivocada desculpa de que a ruptura de relações poderia gerar profundas consequências econômicas para o Brasil se sustenta. Em 2024, enquanto Israel foi responsável por apenas 0,4% das exportações totais brasileiras, o Brasil foi o 12º maior parceiro comercial, o que indica uma dependência maior de Israel em relação a certas importações brasileiras.
No âmbito militar, o governo brasileiro manteve intactas todas as relações prévias, inclusive as estabelecidas pelo governo de Bolsonaro. Uma relação pautada em diversas parcerias de colaboração mútua com uma indústria bélica que se desenvolveu utilizando a Palestina como laboratório, como expõe o jornalista Anthony Loewenstein em seu livro, Laboratório Palestina (10). Em 2024, inclusive, o exército brasileiro fechou contrato de R$1 bilhão com empresa que lucra com massacre em Gaza (11). Além disso, neste mesmo ano bateu recorde de importações de armas de Israel (12) e que é fruto dessa relação militar já antiga do nosso país com Israel, inclusive com consequências na repressão nas favelas e no genocídio do povo negro (13).
Por que Lula não rompeu relações com Israel?
Em que pese a alcunha de progressista e o discurso diferenciado, o caráter burguês e pró-imperialista do governo Lula o impede de romper relações com Israel. Essa ruptura significaria um passo no sentido de questionar não só o projeto estratégico do imperialismo no Oriente Médio – cujo enclave israelense é fator chave – como jogar água no processo mundial de levante de massas em apoio à Palestina que alimenta o conjunto do movimento de massas no enfrentamento ao imperialismo. Nas últimas semanas temos assistido não só às mobilizações populares pró-Palestina em todo mundo, como ao ascenso em Nepal, Madagascar, Marrocos e Peru apenas para citar os levantes das últimas semanas e, inclusive, mais um “No Kings Day” nos EUA no dia 18 de outubro.
No âmbito interno, este mesmo caráter burguês e pró-imperialista de seu governo, o impede de romper relações com Israel. O governo, que seguiu sustentando uma arquitetura de Defesa e “segurança pública” cujos contratos militares com Israel são parte fundamental, também não quer se enfrentar com os setores do Agro. Não tanto pela importância da exportação de carne, soja, entre outros produtos que representam apenas 0,5% das exportações do Agro do Brasil (embora o Brasil seja o segundo maior fornecedor de produtos do agronegócio para Israel), mas principalmente pela importação de fertilizantes (especialmente fosfatados e potássicos) e pela troca de tecnologia e inovação (14).
Na medida em que representa um governo que busca, supostamente, conciliar interesses inconciliáveis do imperialismo e seus parceiros da burguesia nacional com os da classe trabalhadora e o povo pobre, Lula se limitou ao discurso e não às ações, guiado, inclusive, também pelo cálculo eleitoral que o avanço em uma ruptura com Israel poderia impactar em uma base eleitoral que se aproxima das posições sionistas alimentadas pelas igrejas evangélicas e pela extrema-direita. Ou seja, em última instância, capitulando à própria extrema-direita com sua política conciliatória.
Diferença na tática, acordo na estratégia: Lula apoia Trump em seu “plano de paz”
Nos últimos dias, o governo brasileiro se manifestou oficialmente favorável à “proposta de paz” apresentada por Trump (15). O documento – redigido por Steve Witkoff e pelo genro de Trump, Jared Kushner, ambos investidores imobiliários – longe de oferecer a paz verdadeira, tem como objetivo reorganizar a colonização da Palestina diante da gigantesca onda de solidariedade internacional em apoio a Gaza e a repulsa gerada a Israel (16).
Trump interveio no sentido de impedir uma desestabilização maior na região diante do perigoso caminho traçado por Netanyahu para os interesses do imperialismo e que poderia caminhar para uma situação de descontrole. Há analistas que, inclusive, apontam que Trump diretamente traiu Netanyahu para viabilizar a concretização deste plano (17). No entanto, como afirma Amjad Iraqui, analista sênior sobre Israel/Palestina na organização de pesquisa International Crisis Group, “isso é uma continuação da ocupação, se não for uma continuação da guerra por outros meios” (18).
É um fato que um cessar-fogo é um alívio profundo para a população de Gaza e os milhares de prisioneiros sequestrados por Israel e que foram libertados e isso não se discute. No entanto, outra coisa é “aplaudir” o Plano de Paz de Trump, como fez o governo brasileiro, uma vez que o documento ataca a autodeterminação do povo Palestino, busca desarmar a resistência e implica em uma submissão total dos palestinos, aprofundando a já pouca autonomia deste povo e mantendo a ocupação. Citando novamente Iraqui: “os palestinos poderão permanecer em Gaza, mas não terão realmente poder de governo sobre seus assuntos” (19).
Ou seja, Lula cumpriu um papel reacionário em mais este capítulo determinante. Enquanto o mundo se levanta para defender Gaza e isolar Israel e também o imperialismo norte-americano, Lula sai em defesa da saída apresentada pelo verdadeiro comandante da carnificina realizada nos últimos dois anos: Trump. Quem conquistou o cessar fogo foi a onda de solidariedade mundial que isolou Israel e ameaçava um salto na desestabilização de toda a situação mundial. Com o posicionamento de seu governo de “aplaudir” Trump, na prática Lula empresta um verniz progressista a uma proposta que não só preparará novos momentos de agressão sionista como buscar assentar novas bases para a colonização da Palestina.
Para a verdadeira paz na região: Defender o fim do Estado de Israel e uma Palestina laica, democrática e não racista
A unidade estratégica de Lula com as posições do imperialismo está em torno da proposta de dois Estados. A espetacular onda de apoio à Palestina levou governos em todo o mundo a reconhecer o Estado Palestino, expressando a profundidade do processo em curso (20). No entanto, não é possível avançar para uma paz verdadeira defendendo nenhuma proposta que esteja vinculada, em perspectiva, com a proposta de existência de dois estados.
A poucos dias Lula disse que não tem nenhum problema com Israel e que seu problema é com Netanyahu (21). Ao proferir esse discurso, Lula sintetizou sua estratégia que é a mesma defendida pela maioria da ONU e que é uma utopia reacionária, tanto teórica quanto já provada sua inviabilidade na prática. Não por acaso, Salem Nasser, professor da FGV-SP, publicou recentemente na Folha de São Paulo que ao se pronunciar desta maneira, Lula “fere a Palestina de morte” (22).
Embora conectada ao senso comum, a paz fruto do projeto de 2 Estados é inaplicável em função da natureza do Estado de Israel. Este Estado não se trata de outra coisa que não um “baluarte da Europa contra a Ásia, um posto avançado da civilização em oposição à barbárie” como disse Theodor Herzl, um dos fundadores do sionismo em seu livro O Estado Judeu, em alusão à defesa dos interesses do imperialismo na região. Sua fundação negociada pelo movimento sionista junto aos distintos interesses imperialistas está baseada na superioridade do “povo escolhido” e na ocupação de “uma terra sem povo para um povo sem terra” que se manifesta em um processo de colonização violento e sistematicamente em expansão. Desde 1948, quando foi fundado até hoje, já ocupa cerca de 80% do território da Palestina Histórica. Trata-se de um Estado essencialmente racista e expansionista que promove sua colonização utilizando-se de métodos de apartheid e limpeza étnica.
Diante disso, só é possível e racional a construção de uma paz verdadeira na região onde convivam árabes, judeus e cristãos no mesmo território com a retomada das terras roubadas, causando uma diáspora palestina de milhões, e estabelecendo um Estado Palestino no território histórico pré-1948, laico, democrático e não racista tal como defendido historicamente pela OLP (Organização pela Libertação da Palestina) e abandonado depois dos “Acordos de Oslo” firmados em 1993 e que provou, após 32 anos, a inviabilidade da concretização da solução de 2 Estados.
A situação em Gaza segue instável e é preciso pressionar o governo Lula para impor a ruptura das relações diplomáticas, comerciais e militares com Israel. Não existe nenhuma razão do ponto de vista da classe trabalhadora que legitime a manutenção destas relações pela situação dos últimos dois anos, mas também pela natureza do Estado de Israel conforme expusemos acima.
Para avançar nessa paz real, é preciso aprofundar a ofensiva em solidariedade ao povo Palestino e a defesa do Fim do Estado de Israel. Avançando com esse debate nas organizações da classe trabalhadora, onde as direções do movimento, pela relação que mantêm com o governo, seguem a mesma trilha de apoiar em palavras a causa Palestina sem construir ações de mobilização concreta que pressionem o governo como assistimos na Itália, Bélgica e Espanha, por exemplo.
Referências:
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-10/guerra-na-faixa-de-gaza-completa-dois-anos-com-mais-de-67-mil-mortos
- https://editorasundermann.com.br/produto/limpeza-etnica-da-palestina-a-brochura/
- https://www.conib.org.br/noticias/todas-as-noticias/38487-conib-repudia-fala-de-lula-que-banaliza-o-holocausto.html
- https://outraspalavras.net/outrasmidias/ese-lula-rompesse-relacoes-com-israel/
- https://www.brasildefato.com.br/2025/08/04/genocidio-lula-brasil-recorde-armas-israel/
- https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/de-gaza-ao-rio-equipamentos-de-israel-globalizam-terror/
- https://agro.insper.edu.br/midia/artigos/os-riscos-da-guerra-israel-palestina-para-o-agro-brasileiro
- https://www.poder360.com.br/poder-governo/brasil-aplaude-plano-de-paz-de-trump-para-gaza-diz-mauro-vieira/
- https://www.intercept.com.br/2025/10/02/plano-de-paz-de-trump-para-gaza-e-a-submissao-total-dos-palestinos/
- https://x.com/RapidResponse47/status/1972726021196562494
- https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/09/21/quais-paises-reconhecem-o-estado-palestino.ghtml
- https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckgywzzld1xo
- https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/10/lula-fere-a-palestina-de-morte.shtml

