(…) O dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada ala da escola será uma quadrilha
A evolução já vai ser de guerrilha
E a alegoria, um tremendo arsenal (…)
Mayara Conti
Vivemos a época de decadência do sistema capitalista. Diante da crise econômica aberta em 2008 e da queda tendencial da taxa de lucro da burguesia, é visível que há cada vez menos possibilidades para que o Estado burguês conceda direitos básicos mínimos à classe trabalhadora.
É importante compreender que, diferente do que se convencionou propagar pela ideologia dominante, a razão de existir do Estado burguês nunca foi promover bem-estar e condições dignas de vida aos trabalhadores. Muito pelo contrário: o poder estatal da burguesia nada mais é que uma “máquina nacional de guerra do capital contra o trabalho”, como nos lembra Lênin, resgatando Marx, no trecho que segue de O Estado e a Revolução:
“No século XIX, desenvolveu-se, saído da Idade Média, ‘o poder estatal centralizado, com seus órgãos onipresentes, com seu exército, polícia, burocracia, clero e magistratura permanentes’. Com o desenvolvimento do antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, ‘o poder do Estado foi assumindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para escravização social, de uma simples máquina de despotismo de classe. Após toda revolução que marca uma fase progressista na luta de classes, o caráter puramente repressivo do poder do Estado revela-se com uma nitidez cada vez maior”
Fica evidente, portanto, que o papel do Estado e sua razão de ser nunca foi garantir direitos sociais à população, como moradia, saneamento, saúde, educação ou segurança, embora tudo isso apareça hipocritamente na Constituição Brasileira como direito fundamental.
Todavia, esse mesmo Estado muitas vezes é forçado a conceder algumas migalhas à nossa classe, já que o capitalismo é um sistema alicerçado no conflito de classes (burguesia x proletariado) em que, muitas vezes, a classe trabalhadora consegue impor uma correlação de forças favorável a si através da sua organização e luta. Mas os direitos conquistados nessas lutas são sempre mínimos, parciais, insuficientes e muitas vezes desaparecem gradativamente com o tempo, variando de acordo com a estabilidade econômica do capital e seus interesses políticos imediatos.
A população dos morros e favelas do nosso país, nesse contexto, representam sempre a parcela mais vulnerável da classe trabalhadora brasileira, a parcela que sempre esteve à margem (daí o termo amplamente utilizado pelas elites: marginais) do sistema, não chegando sequer a acessar direitos básicos conquistados pelos demais setores da classe trabalhadora. Isso acontece não por acaso, já que a maioria da população favelizada é composta pelo setor mais precarizado e oprimido da nossa classe.
Segundo o censo do IBGE de 2022, cerca de 72,9% dos moradores de favelas no Brasil são negros, muitos descendentes de negros escravizados no Brasil colonial que, mesmo após sua libertação, foram condenados a viver nas regiões periféricas das grandes cidades, com pouco ou nenhum acesso à educação formal, saneamento básico, saúde etc.
A essa parcela social também são destinados os piores postos de trabalho, com baixíssima remuneração e ausência de direitos trabalhistas. Isso sem falar na necessária formação de um permanente exército industrial de reserva para o capitalismo, que precisa de um batalhão de gente desempregada e desamparada pronta para aceitar qualquer posto de trabalho a qualquer preço para sobreviver, pressionando o valor da força de trabalho de toda a classe trabalhadora sempre para baixo.
Diante dessa realidade, não é de se espantar que o crime organizado tenha se instalado justamente aí, prometendo ser a única alternativa real de ascensão social, principalmente para os jovens periféricos.
Quantos meninos negros explorados, oprimidos, criados sem nenhuma oportunidade e perspectiva de futuro, não escolhem diariamente entrar no crime organizado como forma de “ser alguém”? Dinheiro, posição, status: o crime organizado oferece muito mais do que o Estado pode oferecer, mesmo considerando a baixa expectativa de vida, e assim vai se enraizando e crescendo nas periferias do Brasil, como um verdadeiro câncer, criado e alimentado pelo próprio Estado burguês.
(…) O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal (…)
O ESTADO BURGUÊS É CORRUPTO E INCAPAZ DE ACABAR COM O CRIME ORGANIZADO
Para além das condições objetivas concretas que o capitalismo gera e nutre, que citamos anteriormente, o Estado burguês também se mostra incapaz de acabar com o crime organizado porque a corrupção de seus agentes públicos é uma de suas características centrais. Se o Estado burguês é, fundamentalmente, uma ditadura da burguesia sobre o proletariado, a corrupção é uma das manifestações dessa ditadura, onde os recursos e o poder do Estado são usados para enriquecimento privado e para garantir a hegemonia da classe dominante.
Recentemente vimos como o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, apresenta ligações diretas com os tentáculos que sustentam o Comando Vermelho, como é possível identificar nas diversas fotos que circulam pela internet em que Castro aparece abraçado com o ex-deputado estadual Thiego Raimundo de Oliveira Santos, suspeito de intermediar a compra e venda de armas para o CV.
O crime organizado precisa se armar para continuar existindo, tanto para subjugar facções adversárias como para apresentar resistência frente ao monopólio da violência estatal para manter seus negócios como são. E não é de se estranhar que essas armas venham justamente de agentes públicos e/ou de gente ligada a eles, como o ex-deputado, que não só não têm interesse nenhum em combater verdadeiramente o crime organizado como atua conscientemente para fortalecê-lo, utilizando sua posição privilegiada de agente do Estado para melhor atender os seus interesses privados e de seus comparsas.
Os fuzis apreendidos recentemente no Rio, foram avaliados em R$ 9,3 milhões de reais, só nessa última “operação”. Esse arsenal certamente será prontamente reposto, isso sem falar nos drones e outros armamentos de guerra que o CV possui. Só por aí, já podemos ter alguma ideia de como a famigerada “guerra às drogas” é extremamente lucrativa para seus financiadores, e como os agentes do Estado estão intimamente ligados à circulação de dinheiro e armas nesse submundo do crime.
Lênin não via a corrupção como um problema simplesmente moral ou legal a ser resolvido por reformas dentro do sistema, mas como uma consequência lógica do controle do Estado pela classe capitalista, que só pode ser superada com a derrubada revolucionária desse Estado. Engels, por sua vez, explicou que em toda sociedade onde a arte, a ciência e o governo são exclusivos de uma minoria privilegiada, essa minoria sempre usará e abusará de suas posições em seu próprio interesse.
(…) Vai ser uma única escola, uma só bateria
Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
Que desfile assim não vai ter nada igual (…)
A SUPOSTA “GUERRA ÀS DROGAS” QUE VITIMIZA APENAS OS TRABALHADORES
Fica evidente, portanto, que o Estado burguês não só alimenta e nutre o crime organizado, como não têm interesse algum em extirpá-lo. No Rio de Janeiro, onde o massacre que matou mais de 100 pessoas ocorreu nos últimos dias, as “operações” policiais são uma constante e evidentemente não foram capazes de conter o avanço do crime organizado, pelo contrário, é sabido que o CV tem se expandido a passos largos pelo país inteiro.
Por outro lado, o que fica dessas “operações” é um saldo de centenas de mortos, cruelmente perseguidos e jogados nas matas, à custa de uma verdadeira guerra dentro dos morros, em que os trabalhadores dali são as verdadeiras vítimas. Casas invadidas, “balas perdidas”, terror e caos espalhados por toda a cidade: esse é o resultado “vitorioso” da operação de Castro e seus comparsas.
Infelizmente, o povo preto e pobre do nosso país é o principal alvo dessas operações, pois ao mesmo tempo em que o Estado cria miséria de um lado, a persegue por outro. As vidas pretas e pobres no nosso país não importam, e isso se deve a um trabalho ideológico profundo vindo desde os tempos da escravidão e que atravessam o nosso cotidiano atual, apesar de toda a hipocrisia do “empoderamento” negro.
Expressão imediata dessa ideologia é a própria frase proferida pelo governador, após a operação, dizendo que naquele dia “só morreram 4 inocentes”, fazendo referência aos policiais mortos e simplesmente ignorando mais de uma centena de mortes. Mortos esses cujas identidades só foram reveladas muitos dias depois, cheio de imprecisões e manobras.
Não bastasse todo esse absurdo, ainda fomos obrigados a assistir uma verdadeira disputa eleitoral entre governo estadual e federal, realizada sem escrúpulos sobre o sangue e os corpos negros, que como “coisas” foram amplamente utilizados para fazer politicagem.
“(…) Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga
Nem autoridade que compre essa briga
Ninguém sabe a força desse pessoal
Melhor é o poder devolver pra esse povo a alegria
Se não todo mundo vai sambar no dia
Em que o morro descer e não for carnaval (…)
O FIM DO ESTADO BURGUÊS CAPITALISTA É A ÚNICA OPÇÃO DOS TRABALHADORES E DO POVO PRETO
O racismo estrutural, a opressão do povo pobre, a corrupção, a miséria, todos os problemas que envolvem esse dramático episódio na história recente do Brasil, só terá fim com a destruição do Estado burguês e do sistema capitalista.
Apesar de importantes, medidas como “federalização das investigações” ou até mesmo a própria deposição do governador e dos responsáveis diretos da operação fracassada são medidas reformistas, ou seja, não atingem senão as consequências de um problema estrutural que deve ser combatido desde a raiz.
Não há milagre nem fórmula mágica, a saída só pode ser coletiva e organizada com o objetivo de destruir o modo de produção capitalista, criar um novo modo de produção, socialista, baseado nas necessidades humanas e não do capital, única forma de reorganizar completamente a sociedade e modificar suas estruturas básicas, consequentemente seus valores morais, sua forma de funcionamento etc.
Nesse sentido, a auto-organização dos trabalhadores é parte fundamental dessa estratégia, tanto dentro do morro e da favela quanto fora, pois o que acontece na favela afeta a sociedade de conjunto e todos os problemas decorrentes daí devem ser combatidos desde uma perspectiva de classe.

